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Entrevistas diárias com pessoas de todas as áreas. Artistas, cientistas, professores, economistas, analistas ou personalidades políticas que vivem na França ou estão de passagem por aqui, são convidadas para falar sobre seus projetos e realizações. A conversa é filmada e o vídeo pode ser visto no nosso site.

282 - FESTin completa 15 anos em Lisboa dando visibilidade a filmes em língua portuguesa
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  • 282 - FESTin completa 15 anos em Lisboa dando visibilidade a filmes em língua portuguesa

    O Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, FESTin, começa nesta quinta-feira (2) em Lisboa em clima de festa. O evento completa 15 anos e promete uma edição “histórica” para celebrar o aniversário. Até o dia 12 de maio, 38 filmes serão exibidos.

    Adriana Niemeyer, fundadora e diretora-artística do FESTin comemora o aniversário. “Quinze anos é uma data muito importante para nós”, garante, ressaltando as dificuldades enfrentadas para chegar até aqui. “Trabalhar com a língua portuguesa não é muito fácil. A gente tem pouco apoio financeiro, não somos uma língua que tem tanta visibilidade no mundo”.

    Ela lembra que o evento, criado ao lado da também jornalista Léa Teixeira, veio preencher uma lacuna porque “não existia um festival dedicado só à língua portuguesa” e que há 15 anos não “imaginávamos que chegaríamos a essa dimensão”.

    Nessa década e meia, 1.238 filmes, produzidos em todos os países de língua portuguesa, foram exibidos. Houve 23 itinerâncias em todo o mundo, 350 convidados internacionais e uma plateia de 60 mil espectadores, sem contar os internautas, que seguem o evento online. “Hoje, podemos ser considerados o maior festival do mundo dedicado à língua portuguesa”, se orgulha a diretora-artística.

    Diversidade e música

    Os 38 filmes selecionados este ano, entre longas, curtas e animação, tanto de ficção quanto documentários, integram as quatro mostras competitivas do FESTin, além de uma retrospectiva e três mostras paralelas, todas marcadas pela “diversidade”. “Nós costumamos escolher filmes que falam sobre direitos humanos, sobre igualdade de gênero, racismo, imigração, meio ambiente, mas também temos muitos filmes ligados à música esse ano”, detalha Adriana Niemeyer.

    O festival terá música na tela do início ao fim, confirmando uma tendência atual do cinema brasileiro. Na cerimônia de abertura, nesta quinta-feira, será exibido o filme “Mamomas Assassinas – O Filme”, de Edison Spinello, e o encerramento será com “Mussum”, de Silvio Guindane.

    A grande novidade dessa 15ª edição é a multiplicação dos locais de exibição em Lisboa visando ampliar ainda mais o público.

    Produções brasileiras dominam

    O FESTin é um festival de língua portuguesa com filmes produzidos nos vários países que falam português, mas as produções brasileiras dominam amplamente a seleção, seguidas pelas portuguesas. Na opinião de Adriana Niemeyer essa proporção espelha a realidade.

    “O Brasil sempre dominou. Tem a dimensão do país, mas também as condições (de financiamento). Sempre aproveitamos alguns programas de incentivo culturais do Brasil para a produção de filmes”, diz a fundadora. Ela ressalta que o FESTin não é o único festival de cinema em que essa dominação da cinematografia brasileira é evidente. “Isso se vê bem claramente em todos os festivais no mundo inteiro”, assegura.

    Mas a maior presença do Brasil é também resultado de um recuo da produção em outros países. “Nós temos visto a produção africana cair. Nós não temos visto grandes produções. Os governos estão investindo cada vez menos na cultura lá, infelizmente”, lamenta.

    Para remediar essa situação, Adriana Niemeyer defende a coprodução entre os países de língua portuguesa. “Nós estamos também fazendo vários encontros entre os diretores portugueses, brasileiros e africanos para que possam fazer no futuro coproduções e incentivar realmente essa produção na África e que para o Brasil também seria muito importante”, acredita. 

    Segundo Adriana Niemeyer, o FESTin serve de “vitrine para esses países africanos, que têm poucos recursos para mostrarem seus filmes em outros países”, ao mesmo tempo que “leva o cinema em língua portuguesa ao redor do mundo”. Para continuar esse trabalho, ela pede mais apoio das autoridades dos países de língua portuguesa.

    “Se fala muito em CPLP (Comunidade dos Países em Língua Portuguesa), em língua portuguesa na ONU, mas eles têm que entender que tudo começa também dentro das comunidades. Nós merecemos um pouco mais de atenção nesse sentido”, reivindica.

    O FESTin 2024 acontece de 2 a 12 de maio em Lisboa, mas os filmes da seleção também pode ser vistos online.

    Wed, 01 May 2024
  • 281 - Antonio Veronese, “O Pintor do Olhar”, inaugura exposição e lança livro em Paris

    Artista brasileiro radicado há mais de 20 anos na França, Antonio Veronese inaugura nesta terça-feira (30) sua mais nova exposição, “Le Peintre du Regard” (O Pintor do Olhar, em tradução livre) na qual traz obras recentes de seu trabalho conhecido por retratar “as profundezas da alma humana”. A mostra é inaugurada às vésperas do lançamento de um livro homônimo, com um resumo da trajetória do artista, que tem obras espalhadas por várias regiões do mundo.

    “É uma mostra com trabalhos novos, de uma fase em que a gente vai ficando mais velho e a pintura mudando um pouquinho”, afirma o artista em referência à oitava exibição na subprefeitura do 6° distrito da capital francesa. O local sempre foi uma referência para a obra de Veronese, que também já exibiu em outros locais de prestígio em Paris como o Carrousel du Louvre, Unesco e o Museu Histórico de Saint-Cloud.

    As novas obras se mantêm fiéis à essência de sua pintura: a expressão do sofrimento humano, preocupação despertada desde seus primeiros anos de vida, na sua cidade natal, Brotas, no interior e São Paulo.

    “Eu sempre tive uma sensibilidade muito grande, até desproporcionada com relação ao sofrimento dos outros. Eu me lembro que eu era pequeno, passava uma ambulância. Eu começava a fazer uma oração para quem estava dentro da ambulância. Meu pai dizia, meu filho, ele tem a família dele para fazer oração. Você não precisa ser o culpado de todas as dores do mundo. Mas eu acho que isso me um pouco enraizado em mim”, lembra o pintor ítalo-brasileiro.

    Suas telas traduzem também suas experiências no Brasil como voluntário de presídios de meninas e meninos menores, no Rio de Janeiro e em Brasília.

    “Eu falava da fome, da exclusão, da violência, mas eu não tinha tido experiência própria. E eu fui de encontro aos meus protagonistas nessas prisões, porque são vítimas absolutas da omissão do Estado brasileiro, que é incapaz de formar bem e incapaz de recuperar quando eles são desviados. Então eu fui tocado profundamente por essa realidade, que é uma realidade assustadora”, afirma o artista, que se formou em Direito e só passou a se dedicar completamente à pintura, sua grande paixão, a partir dos 36 anos, após um problema cardíaco.

    Pintor autodidata, ele teve como grandes influências de Lasar Segal e outros mestres como o norueguês Edvard Munch e do anglo-irlandês Francis Bacon. A relação com sua arte é totalmente orgânica, garante.

    “A pintura se manifesta de uma maneira quase que espontânea, quase que só trabalhando o hemisfério direito do cérebro, não o esquerdo. Então ela vai sair como? Como um vômito. De tudo isso que eu passei, de tudo isso que eu vi. E ela vai buscar, com a experiência, uma forma estética que possa convencer. Mas o primeiro movimento, o primeiro ato, ele é fruto de uma pulsão. Não existe nenhum tipo de racionalismo, racionalidade na primeira imagem que depois vai ser desenvolvida”, explica.

    Perplexidade do mundo contemporâneo

    Com obras expostas em lugares tão distintos como Paris, Dubai, Japão, Los Angeles, Suécia e Estados Unidos, Veronese acumula críticas elogiosas ao seu trabalho tanto da imprensa como da crítica especializada. Em 2011, lembra, o jornal The New York Times escreveu sobre suas obras: “Veronese não pinta rostos, pinta sentimentos”.  

    No seu trabalho, Veronese expressa sua perplexidade diante das tragédias do mundo contemporâneo, e explica por que prefere não dar nomes às suas obras, apesar das exigências do mercado e dos expositores. “Eu não consigo explicar, porque realmente a pintura, a escolha do que vai sair, ela é sem nenhuma preparação, sem nenhuma racionalidade. Ela é fruto de uma pulsão. Então se eu dou o nome, eu te direciono para uma coisa que nem eu sabia que existia, aquela imagem. Ela vem de uma pulsão inicial”.

    Antonio Veronese decidiu se estabelecer na França, onde seu trabalho já foi catalogado como “expressionismo orgânico”. Mas curiosamente, conta, é o local onde menos vende suas obras. “A classe média francesa é extremamente sofisticada, mas não sobra dinheiro. Os impostos são altos, então para ela é difícil comprar. As observações e os comentários dos franceses me orientam para a continuidade da exposição. Eles dizem, fazem comentários. Eu vejo o quadro que chama mais atenção, então essa sofisticação é francesa, é uma coisa extraordinária”, afirma Veronese.

     

    Críticas ao Brasil

    Essa acolhida o convenceu a fincar residência e seu ateliê na capital francesa, em 2004, deixando para trás seu país natal, alvo de algumas críticas. “Eu acho que a classe “A”, que teria sofisticação para comprar pintura no Brasil, está mais interessada em comprar bolsas de grife, de coisas assim”, lamenta.

    No entanto, Veronese faz questão de destacar suas várias exposições no país, entre elas no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro e também no Museu da cidade de São Paulo. Além disso, tem um painel no Congresso Nacional e na Universidade Católica no Rio de Janeiro, chamado Just Kids, que é o símbolo do 10° aniversário do Unicef.

    “Eu reclamo um pouco do Brasil, mas de uma certa insensibilidade das elites do que de uma colhida das instituições. Esse apoio que sinto aqui na França, das pessoas de classe média, do cinema, músicos que estão nas minhas exposições, é uma coisa que acalenta o coração da gente”, conclui.

    Mon, 29 Apr 2024
  • 280 - Romance histórico sobre rendeiras do interior de Pernambuco ganha tradução na França

    A escritora e roteirista carioca Angélica Lopes acaba de lançar na França a tradução de seu primeiro romance, "A Maldição das Flores" ("La Malédiction des Flores"), editado pelo prestigiado selo Seuil. Neste romance histórico, ela narra a intrigante história de um grupo de mulheres rendeiras do interior de Permambuco que inventa um código com os pontos da renda e lacês para poder se comunicar e salvar uma amiga de uma situação de violência doméstica, nos anos 1920.

    "Como todo grupo oprimido, que não tem como se comunicar ou lutar de maneira muito ruidosa, elas inventam uma técnica discreta, silenciosa, para conseguir passar mensagens e elaborar a fuga da amiga", explica Angélica em entrevista à RFI

    A história é ambientada na região onde nasceu a bisavó de Angélica, um universo que sempre chegou aos ouvidos dela por meio de histórias contadas pela mãe ou por seu avô. Nascida no Rio de Janeiro, Angélica foi atraída pela região dos ancestrais – "dominada por coronelismos e outras leis, leis dos homens" –, uma realidade bem diferente do espaço urbano onde cresceu.

    "Esse livro veio de um desejo meu de falar sobre a união entre mulheres, de conexão entre mulheres, de luta por emancipação", explicou.

    A trama é alimentada pela maldição que atinge a família Flores. Todos os homens que passam pela vida das mulheres dessa família morrem cedo. Elas se casam, o marido morre, os filhos homens morrem ainda crianças. A partir de algumas gerações, o número de mulheres na casa aumenta.

    A cidade cria uma narrativa de que aquelas mulheres são amaldiçoadas, uma narrativa que "se você se aproximar das Flores, você pode morrer". Mas ao ficarem isoladas e não terem a vigilância de marido, irmão, elas se tornam muito mais livres do que todas as outras mulheres da cidade.

    "A maldição, na verdade, é uma bênção para elas naquela época, porque elas faziam a renda, elas tinham o próprio sustento pelas mãos", destaca a autora.

    Rendeiras: uma história de luta e independência

    Foram freiras francesas que introduziram a renda Renascença no Nordeste. Mas as religiosas teciam as peças em segredo nos conventos. Na pesquisa que Angélica fez em Pernambuco para a construção do romance, ela encontrou rendeiras que tiveram um papel determinante para a democratização da atividade, gerando renda para uma região sem recursos. Histórias reais dessas heroínas se entrelaçam com os personagens de ficção. 

    "Maria Pastora, por exemplo, trabalhava num convento e aprendeu a fazer renda observando os movimentos das religiosas. Ela compartilhou a técnica com as suas amigas e familiares, fazendo a renda se espalhar por Pernambuco", conta. A cidade de Pesqueira, segundo a escritora, "tornou-se um grande polo de produção, gerando renda para todo mundo". Outra personagem que ela destaca é uma abolicionista do Recife que organizava manifestações feministas, participou da luta pelo voto feminino e pelo divórcio. 

    Angélica Lopes tem 20 livros publicados, mas a maioria para o público infantojuvenil. Com este primeiro romance, ela diz que satisfaz um desejo de se dedicar a uma literatura de maior complexidade. "Eu já estava sentindo nos meus dois últimos livros juvenis, que eles já tratavam de temas adultos. Eram livros que tratavam de depressão, um outro de bullying. Apesar de serem temas também jovens, eles eram mais complexos, então eu já tinha essa vontade de buscar uma literatura um pouco mais desafiadora, um texto mais desafiador", diz. 

    "A Maldição das Flores" já foi traduzido ou está sendo traduzido para França, Itália, Estados Unidos, Portugal (uma adaptação), Turquia, Romênia, Polônia e talvez seja brevemente publicado na Coreia do Sul. No Brasil, o livro é editado pela Planeta.

    Sat, 27 Apr 2024
  • 279 - "É um presente ocupar o pavilhão de artes aplicadas na Bienal de Veneza", diz Beatriz Milhazes

    A convite do brasileiro Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza, e do Victoria and Albert Museum (V&A) de Londres, a artista carioca Beatriz Milhazes expõe até novembro obras monumentais no Arsenale, o pavilhão dedicado às artes aplicadas na mostra internacional mais antiga do mundo. Vinte e um anos depois de estrear em Veneza, que representou para ela "um divisor de águas" na carreira, a pintora contou em entrevista à RFI como é estar de volta ao evento italiano. 

    "Eu chamaria de um 'presente' o convite para essa participação", diz a carioca, uma das artistas brasileiras de maior projeção internacional na atualidade. Quando representou o Brasil na Bienal de Veneza de 2003, ao lado de Rosângela Rennó, cada uma em uma sala, Beatriz não imaginava que viveria novamente um momento tão intenso. 

    "Esse convite em 2024 reúne duas coisas muito significativas na minha vida: o Adriano Pedrosa [diretor artístico do Masp], com quem tenho parcerias diversas há pelo menos 20 anos, e é o primeiro curador não americano e não europeu escolhido para ser o curador-geral da Bienal, e o pavilhão de artes aplicadas, que é uma colaboração entre o Victoria and Albert, um dos meus museus favoritos", relata Beatriz. O V&A tem a maior coleção de arte artesanal do mundo e sempre serviu de referência ao trabalho da brasileira. "É a união de duas situações muito fortes em termos da minha vivência artística", destaca. 

    O universo do design, de tecidos, bordados, crochês e rendas sempre interessaram à pintora e gravadora. Para compor a seleção de obras apresentada em Veneza, o curador Adriano Pedrosa propôs a ela que focasse em tecidos para desenvolver as pinturas murais. A artista selecionou alguns que já tinha em sua coleção pessoal e, com uma verba do museu de Londres, comprou outros tecidos antigos artesanais.

    "Eu pude estudar especificamente a questão cromática, a construção dos tecidos e estruturas, o cruzamento, os elementos e motivos que você encontra, olhar para isso e trazer para o universo da minha pintura de forma mais objetiva", explica. "Foi um desafio, porque uma coisa é você ter essas referências e elas estarem livres no seu universo, outra coisa é você realmente ter aquele material 'x'". Em seguida, o resultado dessa observação foi transposto para os desenhos preparatórios, que foram o ponto de partida para a construção de cada uma das cinco pinturas monumentais que exibe em Veneza – todas inéditas para o público.

     

    História, arquitetura e pintura

    O visitante que entrar no pavilhão do Arsenale irá se deparar com a tela "Memórias do futuro 1", pintada por Beatriz Milhazes em 2022. "A ideia é realmente de você trabalhar ou vivenciar essa história para construir as memórias do futuro", avisa.

    Na passagem para a sala principal, vê-se um grupo de colagens de papel que serviu no processo de trabalhos em gravura e serigrafias recentes, mas anteriores à pandemia. Ao entrar na sala principal desse prédio histórico, carregado da memória de Veneza, construído com tijolos aparentes vermelhos e colunas imensas, aparecem as cinco pinturas monumentais sobre painéis, em um ambiente em que o público é envolvido entre a arquitetura e as pinturas. 

    "No centro do pavilhão, tem uma mesa, onde eu fiz uma composição com tecidos de vários países – Filipinas, Vietnã, Japão, África, Brasil, Guatemala, México – que praticamente virou uma instalação", conta a pintora carioca. 

    Tapeçaria irá decorar embaixada dos EUA em Brasília

    No painel principal, o maior deles, em frente às pinturas, a artista instalou uma tapeçaria desenhada por ela, mas executada na célebre Manufacture Pinton, instalada na região de Aubusson, no centro da França. A peça, de 8 metros de largura por 3,20 de altura, será instalada na nova sede da embaixada dos Estados Unidos em Brasília. 

    Em sua pesquisa de preparação das obras, Beatriz Milhazes diz buscar "a poesia" e "lidar com a alma". "Esse tipo de 'fazer', que são parte de rituais, que demonstram uma preservação da cultura de diversos lugares no mundo, é uma busca por algo que é espiritual, belo, humano", exalta.

    "Isso, para mim, sempre foi uma fonte extremamente rica para o meu trabalho. Eu sempre tentei unir os conceitos, vamos dizer, da pintura, que vieram do modernismo europeu. No meu caso, a minha referência mais forte foi o modernismo europeu e o nosso brasileiro, que já revisitaram todas essas práticas de arte popular, arte naif, outras artes, que hoje finalmente estão sendo reconhecidas simplesmente como arte", observa. A busca de regularidade, a ordem e a cor, como elemento principal nessa construção, sempre a interessou. "A mim, me fascina desenvolver complexos sistemas de ordem que são baseados num fazer humano", reflete. 

    "Uma felicidade estar ao lado de artistas indígenas"

    O curador Adriano Pedrosa trouxe para a Bienal de Veneza vários artistas indígenas brasileiros. Conviver com eles na preparação da exposição foi "uma felicidade", afirma a pintora carioca, que sempre se interessou por esse universo.

    "Os meus arabescos, por exemplo, foram inspirados nos desenhos faciais das tribos Kadiwéu, que são desenhos que as mulheres faziam no corpo", aponta. "Eu acho o Carnaval no Rio de Janeiro, o desfile carioca, extraordinário na maneira como a liberdade existe na relação cromática, junto com a questão das formas e o desenvolvimento dos temas. É um momento extremamente feliz que nós estamos vivendo", afirma Beatriz Milhazes. 

    Na avaliação dela, não é só a questão do curador Adriano Pedrosa ser brasileiro, mas a leitura renovada e "possível" que ele faz de toda a arte construída até agora, "um universo que nunca fez parte". "Para mim, é uma felicidade tudo isso", conclui.

    Fri, 26 Apr 2024
  • 278 - 50 anos da Revolução dos Cravos: cientista político estuda oposição à ditadura portuguesa no Brasil

    O dia 25 de abril marca os 50 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal, que resultou no fim da ditadura liderada por Antônio Salazar e que influenciou na independência de colônias portuguesas na África. Um aspecto menos abordado dessa história é a oposição ao governo português feita a partir do Brasil, onde muitos portugueses viveram exilados. Esse é o tema da pesquisa do professor e cientista social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Douglas Mansur, entrevistado pela RFI Brasil.

    Maria Paula Carvalho, da RFI

    RFI: Para fugir da ditadura de direita mais longa do século XX, que durou de 1926 a 1974, várias levas de portugueses foram para o Brasil, um dos países que mais recebeu imigrantes de Portugal, juntamente com a França e a Itália. Esses migrantes tiveram uma atuação importante contra o regime de Salazar e pela volta da democracia no seu país de origem. Como funcionavam estes centros de oposição à ditadura portuguesa no Brasil e que impacto eles tiveram?  

    Douglas Mansur: Como você mencionou, a ditadura de Portugal foi a maior ditadura de direita do século XX. Ela começou em 1926, com o golpe militar de Salazar, e segue ao longo dos anos com o Estado Novo. Salazar fica no poder até o final dos anos 1960, quando pela idade não tem mais condições de governar e vem a falecer. O regime dura, ainda, até 1974, nos últimos anos, tendo o Marcelo Caetano à frente. E durante todo esse período, nós tivemos uma oposição interna em Portugal, clandestina e alvo de prisões, de violações de direitos humanos etc., de formas de expulsão. Por isso nós tivemos um número significativo de exilados. O exílio no Brasil teve um papel fundamental. Até 1961, o Brasil era o país com maior número de imigrantes portugueses.   

    RFI: Uma primeira leva de exilados partiu em 1927, segundo a sua pesquisa, com um perfil mais liberal e republicano e fundaram associações no Brasil, onde passaram a publicar jornais. Como foi essa atividade?

    Douglas Mansur: Uma primeira leva, como você mencionou, veio logo em 1927. Eram liberais republicanos e fundaram no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, centros republicanos, além de jornais. O "Portugal Republicano" era um desses jornais. Mas essas associações foram fechadas com o nacionalismo de Vargas e com o início da Segunda Guerra Mundial. Então, nós temos um período de praticamente uma década em que há muito pouca oposição à ditadura portuguesa. O salazarismo, inclusive, cresce entre as colônias e entre as associações de imigrantes.  

    RFI: Já depois da Segunda Guerra, a partir de 1950, começaram a chegar ao Brasil portugueses mais jovens, com ideais socialistas e comunistas, para fortalecer essa oposição. O que diferencia esse segundo grupo do primeiro e como eles atuavam? 

    Douglas Mansur: Essa oposição é retomada em meados dos anos 1950, aí já mesclando essa geração mais antiga de liberais republicanos com uma geração nova, que vive os anos da guerra em Portugal, com uma predominância de comunistas, mas também socialistas, mais tarde de católicos e até de dissidentes do regime.  

    RFI: Com a queda do fascismo e do nazismo, havia uma expectativa pelo fim das ditaduras na Espanha e em Portugal, o que não aconteceu. Mais do que nunca, esses portugueses no exílio se lançaram na luta pela democracia, e uma das suas armas era a publicação de um jornal. Esse processo também contou com a participação de brasileiros?  

    Douglas Mansur: Esse pessoal resolve fundar, em meados dos anos 1950, um órgão de imprensa: o "Portugal Democrático". Este jornal vai durar até 1975, portanto até depois do fim da ditadura, e vai ser o único órgão de imprensa em língua portuguesa, que trata de Portugal no exílio e que não vai sofrer censura. E ele vai conseguir agregar não só grande parte dessa oposição, mas também ter uma relação com intelectuais, com universitários, com sindicalistas brasileiros, com a sociedade civil brasileira de modo geral.  

    RFI: Logo em seguida, eles enfrentaram, também, a ditadura militar no Brasil. Eles puderam continuar a questionar a ditadura portuguesa, quando vários meios de comunicação brasileiros e intelectuais eram censurados em casa? Eles podiam tratar de casos de tortura, abusos ou falar de anistia no seu país natal, quando práticas semelhantes ocorriam no país de exílio?  

    Doulglas Mansur: Quando o jornal foi criado, o Brasil vivia uma democracia, ainda que relativa e questionável em muitos aspectos, mas isso possibilitou a ampliação significativa e a vinda para o exílio de lideranças políticas portuguesas do campo da oposição. De fato, em 1964, o jornal lança uma edição teste, logo após o golpe de 1964, em que usa vários jargões da esquerda, jargões marxistas, para testar se ele ia ou não ser censurado. E o que aconteceu foi que o diretor do jornal foi chamado e avisado de que o jornal poderia continuar a circular, desde que não tocassem em assuntos brasileiros. Apesar disso, ele foi importante porque circulava em São Paulo e em mais de 20 cidades do Brasil e, depois, em mais de 20 países. Ele tratava de temas como violação de direitos humanos, tortura, anistia, democracia, temas que estavam censurados no Brasil e que, de alguma forma, eram tratados, só que espelhados em outra ditadura. E, curiosamente, o governo da ditadura civil-militar brasileira também era simpatizante da causa anticolonial, de libertação dos povos das então colônias africanas, que começaram um conflito com Portugal, a partir de 1961, para se tornarem independentes. E o jornal tratou bastante disso e se aproximou desses movimentos, o que fez com que ele tivesse longevidade e não passasse por censura.   

    Evento em Paris

    RFI: Tudo isso está no livro que você publicou em 2006, chamado "A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro", que está na sua terceira edição. Por causa desse trabalho, você foi convidado para tratar do tema em uma conferência que acontece aqui em Paris, neste 26 de abril, um evento sobre os 60 anos da ditadura brasileira, na Escola de Altos estudos em Ciências Sociais da França (École des Hautes Études en Sciences Scociales – EHESS), do qual você participa por videoconferência para falar dessas redes de enfrentamento da ditadura em outros países. Conte-nos sobre a sua participação?  

    Douglas Mansur: Trata-se de um evento sobre os 60 anos da ditadura no Brasil e eu vou abordar essas redes que foram importantes para a inserção dos exilados portugueses no Brasil. É importante dizer que já havia revistas no Brasil que haviam aproximado os modernistas brasileiros aos modernistas portugueses. Então, nas páginas do "Portugal Democrático", você podia encontrar manifestos em prol da anistia assinados por Vinícius de Moraes, artigos do Rubem Braga, de Carlos Dummond de Andrade, que contribuíam para o jornal. O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes também ajudou a organizar congressos no Brasil em prol da anistia de presos políticos da Espanha e de Portugal. E depois, com o 25 de abril de 1974, acontece o movimento inverso. Uma parte desses portugueses volta para Portugal e passa a lutar e a apoiar uma oposição à ditadura brasileira. Alguns brasileiros vão para Portugal e para Moçambique, que é uma dessas ex-colônias, e que se tornam independentes. Então, de alguma forma, você tem uma vivência em duas ditaduras e a oposição a duas ditaduras. Justamente essa vivência, de um enfrentamento de um exílio no Brasil e depois de uma segunda ditadura no Brasil, e em seguida o movimento inverso, de receber e acolher brasileiros, é disso que iremos tratar. 

    Crescimento da extrema direita  

    RFI: O que pode ser dito sobre a relação atual entre o Brasil e Portugal? Em que contexto se inserem esses 50 anos da Revolução dos Cravos e os 60 da ditadura brasileira? 

    Douglas Mansur: Brasil e Portugal têm uma relação histórica, apesar da imigração de portugueses no Brasil ter diminuído significativamente e de Portugal ter adentrado na União Europeia em 1986 e ter se voltado muito mais para este espaço. Porém, os dois países vivem dilemas contemporâneos em torno da democracia. É impressionante ver como os temas são recorrentes, inclusive os lemas, as frases. O Salazar tinha como lema "Deus, pátria e família", por exemplo. Eu vejo muito mais proximidade entre o salazarismo e uma extrema direita brasileira do que propriamente com o fascismo histórico italiano, que era expansionista, que era secular, não era ligado à religião. A expressão de extrema direita do Brasil, e que até agora também tendo espaço em Portugal, tem muito mais relação com o salazarismo histórico, embora tenha alguns elementos de fascismo do que com propriamente o fascismo e o nazismo. 

    RFI: As últimas eleições em Portugaldemonstram a ascensão da “nova direita” representada pelo partido Chega.

    Douglas Mansur: Os dois países estão experimentando testes nas suas democracias e a ascensão de uma extrema direita. Em Portugal, pela primeira vez desde o 25 de abril de 1974, você tem uma votação expressiva de extrema direita. Até onde vai o pluralismo, até onde a democracia pode tolerar de modo que não seja aniquilada? E são debates que já estavam no antigo jornal "Portugal Democrático", não com essa linguagem. Mas são debates que a gente, olhando para a história, vê que tiveram a ver com a desinformação. Não é o único fator, mas foi um fator importante para a ascensão da extrema direita, do nazifascismo e de outros regimes de extrema direita na Europa. Há outras razões, como a questão econômica, estrutural e estamos vendo um período pós-industrial no mundo, isso gera muito desemprego e novos riscos sociais. E então alguns imaginam outras alternativas à democracia. Há uma ascensão de extrema direita em diversos lugares do mundo: na Hungria, no Brasil e até nos Estados Unidos. Voltando à questão histórica, eu vejo muita relação das fake news com toda a propaganda falsa que o nazismo fazia sobre o perigo do estrangeiro, particularmente do polonês, para justificar a invasão da Polônia e começar ali uma expansão pela Europa. Tudo isso passava no cinema, passava no rádio. Isso fez com que Hitler fosse eleito e levou a uma exacerbação do nacionalismo. A gente está no meio desse debate agora.  

    Thu, 25 Apr 2024
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